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quinta-feira, 16 de abril de 2015

Casaco sobre a cadeira

Junho de 2013, domingo, 9 horas da manhã.

Lembro perfeitamente que eu estava alimentando a Panci na cozinha da casa dos meus pais e meu celular tocou. Era minha editora, na época em que eu era repórter. A voz dela baixinha ao telefone, quase sumindo. "Lyra, você pode vir trabalhar mais cedo hoje?". Aos domingos geralmente o expediente no jornal começa às 13h. Respondi: "O que aconteceu?". "Seu Alê morreu".

Talvez as soleiras da redação toda feita em vidro e piso de cerâmica estejam acostumadas à tragédia. Mas talvez não. Seu Alexandre era o editor executivo do jornal. No sábado (nossa folga), ele partiu num ataque cardíaco fulminante.

Nós, que estamos acostumados com as tragédias normais da vida, nos pegamos de vez em quando encarando o vidro como se pudesse ver além das paredes, além das luzes. Jornalista, aquele que relata a vida. A morte na rua. Homem morto no córrego. Assassinato. Acidente. Vive em delegacia olhando alguns algozes de frente. Lida com a perda em sua forma mais profunda: a factual, a recente.

Temos medo de ficarmos indiferentes, de vez em quando. Acho que todo jornalista já teve esse medo. Eu, pelo menos, já tive.

Há algumas semanas, a redação foi impactada com a morte de D. Regina, nossa revisora, que trabalhava no jornal desde que ele abriu. Ela amava gatos e vivia me contando do quanto mimava sua gatinha, me dando dicas, me perguntando se as minhas gatinhas já estavam se dando bem.

Algumas vezes fui perguntar coisas de revisão pra ela e fiquei papeando. "Dona Regina, qual o uso dessa palavra?". Ela sempre me respondia sorrindo e emendava: "E suas gatinhas, como estão?". Não convivemos muito, mas fiquei muito triste.

Fui perguntar à uma diagramadora justamente se alguém sabia da existência da gatinha, se precisava alimentá-la, e meus olhos pousaram sobre o casaco rosa claro sobre a cadeira. Do jeito que ela deixou. Ela poderia ter estado ali há cinco minutos atrás. Porém jamais estaria de novo.

(texto escrito em 5 de março de 2015).

quinta-feira, 19 de março de 2015

Escarlate não é vermelho

"Me ensine a ver as coisas
E todas as pistas estão, tão embaçadas, através
Escarlate não é vermelho"

Acordei com esse verso na cabeça. E ele não é meu. É de uma banda independente que fez parte de um jeito muito louco da minha adolescência: Torivas.

Me ensine a ver as coisas.

E hoje esse verso significa que eu tenho tanta coisa pra aprender na jornada. Mas agora é como se eu olhasse por uma janela e lá fora só fizesse neblina. Quando abri os olhos hoje e me lembrei desses versos, alguma coisa me incomodou. Talvez estar envelhecendo.

Vim procurar agora se essa banda ainda existia e não, não existe mais. Pararam de atualizar o Fotolog ainda naquela época. Mas ao ouvir os primeiros acordes de "Escarlate" um mundo de memórias veio na minha cabeça, de um tempo que eu não sinto exatamente saudades. Talvez de algumas coisas. Me veio um sentimento engraçado, de que eu vou fazer 26 anos. E eu quero gritar, tal qual eu gritava na minha banda, expurgando demônios a cada apresentação, independente de ter plateia.

Sei lá. Talvez esse loop em que eu me encontro de volta e meia relembrar um tempo que não volta mais seja uma parte do meu desabafo de finalmente estar do lado de cá, na vida adulta.


Me ensine a ver as coisas...







quinta-feira, 5 de março de 2015

A publicidade brasileira não se garante

No dia 12 de fevereiro, a Revista Fórum publicou um artigo sobre a última publicidade machista do mês: das sopas Vono. Essa semana a discussão toda estava ao redor da propaganda da Always onde Sabrina Sato comparava o “vazamento” da menstruação (quem nunca?) com o “vazamento” de vídeos íntimos na internet. Só que nunca.

As pessoas ficaram bem bravas. E com razão. Entre outras questões, a propaganda fez o que tem sido feito no Brasil à exaustão: culpou a vítima.

Eu trabalhei dois anos numa agência de publicidade e jornalismo, mas as redações eram juntas e hoje eu trabalho diretamente com um publicitário. Sempre admirei o trabalho dos diretores de arte, redatores, mídias e atendimentos. Acho um trabalho tão árduo quanto o de muitos jornalistas que eu conheço. Por isso eu aprendi o seguinte: publicidade machista não é culpa só da agência de publicidade.


Uma campanha passa por NO MÍNIMO três pessoas: o atendimento, o diretor de criação e o cliente. Isso se a agência for pequena. Em grandes agências  deve passar por umas 30 pessoas. Mas o fato é que existem conceitos a serem mudados de todos os lados. A agência precisa se despir de machismo e preconceito na hora de criar ou sugerir uma campanha e precisa sim pensar no impacto negativo que isso vai ser gerado depois que ela for ao ar. Hoje a internet não poupa ninguém. Mas o cliente precisa entender que publicidade burra e preconceituosa muito mais atrapalha do que ajuda.

No Brasil, a publicidade não se garante. E é por isso que propagandas de cerveja com mulher seminua continuam sendo feitas. Não é porque vende. A publicidade tem medo de deixar a campanha padrão-machista de lado e investir em outro conceito e fracassar. Mas o que ela não percebe é que essa falta de coragem já é um fracasso por si só.

A publicidade tem poder de emocionar, de tocar, de abrir horizontes e de despertar emoções. De fazer rir mas também de incomodar. E mesmo assim as mulheres continuam sendo meros objetos decorativos e sexuais. Isso quando a propaganda não faz apologia à dominação e ao estupro. Em um mundo onde uma maioria esmagadora de consumidores é do gênero feminino e onde os índices de violência feminina são alarmantes, a publicidade continua tendo medo de empoderar as mulheres.



Um trecho muito pertinente do artigo da Fórum sobre a propaganda da Vono: "Aliás, falar na linguagem do capitalismo às vezes é a melhor alternativa que as mulheres possuem para que sejam ouvidas. Afinal, mulheres também bebem cerveja, compram sopa em pó, consomem e pagam por produtos e serviços. Em muitos casos, as mulheres ainda são responsáveis pela feira da semana ou do mês e são elas que se deslocam até supermercados para escolher o que vão colocar na mesa. Parece lógico, mas no mundo da publicidade, só quem recebe o devido respeito é o público masculino, em detrimento das mulheres, que são constantemente hostilizadas e agredidas em propagandas misóginas".

Se o mundo é metade feminino, porque a publicidade brasileira é tão machista? Se nós consumimos cerveja, porque estamos nuas nas propagandas? Porque somos vendidas como meras donas de casa ou objetos sexuais segurando uma garrafa? Porque, meus queridos, a propaganda é a alma do negócio. Enquanto a publicidade vender que somos seres inferiores, tem muita gente que vai acreditar e continuar alimentando o monstro do machismo. Simples assim. A publicidade tem medo das mulheres.

Isso só mostra que estamos no caminho certo. Mas ainda existe muito a se fazer.

Outros links pra se ler: 
Dez propagandas históricas machistas
Mídia Feminista
O machismo que impregna a propaganda

segunda-feira, 2 de março de 2015

Callas, essa maravilhosa

Há algumas semanas, o caderno que eu edito no jornal ficou em polvorosa com a chance de entrevistar uma atriz maravilhosa, diga-se de passagem: Silvia Pfeifer. Quem assiste ela na novela das sete como vilã, hoje, não imagina a simpatia que ela é. Uma pessoa centrada, acessível, que, como diz a minha estagiária Lua, ganha em todos os níveis de maravilhosidade. A Silvia veio pra cá pra estrelar a peça "Callas", baseada na vida trágica da soprano grega Maria Callas, que morreu nos anos 70. 

Resolvi ir assistir já antecipando que seria uma peça daquelas boas. E de fato, foi. A Silvia, incrível, o cenário extremamente elegante e bonito, iluminação surpreendente e sensível. Em quase uma hora de montagem, você tem a oportunidade de conhecer mais sobre uma cantora que fez história na ópera mundial, e que teve uma trajetória cheia de problemas pessoais e profissionais. 

Foto: Marcelo Victor

O enredo se desenrola, curiosamente, como se fosse uma enorme entrevista jornalística daquelas que só repórteres próximos à fonte fariam, já que, na sinopse, o jornalista John, personagem fictício, convida Callas para conhecer uma exposição que fará sobre ela e aproveita para entrevistá-la. Só que, nesse momento, a intensidade e a dramaticidade de uma história real acabam dominando a história. Em determinado ponto, John (o jornalista) vira o entrevistado pela curiosa Callas, que, nesses momentos, deixa a amargura pessoal de lado para fazer perguntas. Mas John foge e recomeça a tocar nas feridas dela. 

A peça me fez refletir não só sobre a história de uma mulher imensamente forte que passou por muitas coisas ruins como uma mãe opressora, a cobrança de ser a melhor cantora do mundo, o casamento sem amor e depois o amor que se casa com outra, o filho que é natimorto, as críticas pesadas da imprensa. Tudo isso pelo amor à música e ao seu público, que ela cultivava com apreço. A maior reflexão que me trouxe foi sobre a relação fonte-repórter

Callas cita, em vários momentos, sua relação de amor e ódio com a imprensa. Muitas vezes, jornais italianos e franceses usaram sua rixa famosa com a cantora Renata Tebaldi, para vender exemplares. E essa pisoteação fazia sucesso. Maria Callas não confiava na imprensa. Mas amava estar nela quando era ovacionada. Nem sempre nosso papel é destruir carreiras ou humilhar, mas revendo a situação dos jornais na época que Callas viveu, muitas vezes isso era serventia da casa. A cantora teve o azar de ver a imprensa em sua face mais grotesca.  

E, quando Callas diz à John que foi execrada pelos jornais porque "abandonou o espetáculo mais uma vez", com manchetes e letras garrafais, ela se vira para o amigo, e diz: "minha voz estava acabada, John". Na biografia dela, é contado que ela desmaiou de exaustão e pela dor da voz há muito perdida atrás das cortinas. Que se fecharam pra sempre.

Momento tietando a Silvia <3

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Dos diários e de um outro tempo



Quem eu era, há alguns anos. A menina que eu fui quando adolescente. Os diários que eu sempre escrevi. Tive um milhão de agendas, cadernos, livrinhos de desabafo. Eu sempre gostei de escrever pra desabafar. 

Desses milhares de diários, alguns cadernos ainda permanecem, que eu escrevi na adolescência. Eu sai da casa dos meus pais e não sei porque senti que precisava deles na minha casa nova. Não folheei nenhum durante a mudança. 

Todos os escritos são reticências de ser adolescente e ter um monstrinho de dúvidas e inquietações dentro de você. E como tudo isso se conecta à mim hoje, quando minha única concessão é escrever nesse blog, raramente, assumo, menos do que deveria. 

Desses cadernos e linhas e folhas de papel, o que sobrou de mim. Ontem a noite precisei abri-los e foi como abrir uma cápsula do tempo, o que na verdade eles são. E perceber que o ensejo não mudou. A música ainda é a mesma. Os desejos de adolescente eu tranquei numa caixa de chumbo aqui dentro. Mas eu não posso continuar mais negando que eles existem e eles já estavam lá naquela época. 

Eu já imaginei criar uma fogueira enorme com esses cadernos e queimar tudo, os canhotos de cinema, os desenhos, os recadinhos de amor e as letras de música. Já imaginei ver aquilo ardendo, queimando, meu passado e minha definição. Mas desisti. Ás vezes a gente precisa se encontrar um pouco. Aquela menina risonha e que funcionava à mil, eu não consigo mais acreditar que não sobrou nada mais dela. A gente não pode aceitar que se perdeu entre os numerais 15 e 30. Nossa idade. Nosso crescimento.

Março, esse mês que se aproxima, quando eu completo, no dia 31, meus 26 anos, sempre me faz refletir dessa forma. Sempre, como aqui. Fuçando nos diários como se fossem tábua de salvação, encontrei a data onde eu comecei a odiar aniversários, em 2004, a contabilizar o caos e a amargura não de ficar mais velha, e sim de me sentir mais frustrada, quando nada que eu imaginei aconteceu. É um sentimento ruim por tempo demais. 

"
Março chegou. Sempre que eu lembro do mesmo mês no ano passado, sinto um aperto no peito. Eu tinha tanta certeza sobre tantas coisas. Sobre o que eu era, o que eu queria e onde iria estar. Minhas certezas eram de ferro. E eis me aqui, vivendo outra vida, que em nenhum momento foi planejada por mim. Março me faz olhar pra trás, pra todos os dias 31 que já passei e lembrar com muita clareza desses planos que nunca floresceram. 
"

Eu disse em março de 2013. Não mais

Esse ano, prometo, vou deixar os diários e o mês de março em paz. E só assim vou sorrir com 26.