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terça-feira, 9 de outubro de 2012

Da amargura de todos nós

Um daqueles dias de calor, onde sobram afazeres e falta tempo. Passei duas horas à procura de uma roupa pro último casamento tradicional que minha família verá. Lembrei que precisava comer e me dirigi ao restaurante de comida chinesa do shopping. Enquanto eu me empenhava em escolher a berinjela empanada mais bonita, uma senhora parou ao meu lado, em frente à atendente. A moça, ar cansado, inspirava pesado e parecia meio doente, meio gripada. 

- Que comida é essa? - disse a senhora, em tom rude. 

- Temos batata agridoce, yakimeshi, carne com moyashi, no self-service e pratos prontos que... 

- Que porcaria de restaurante você serve, garota. - disse a senhora. - Porque não tem uma abobrinha refogada, um leguminho? uma carne assada? uma polenta? assim é difícil, garota. Assim não dá. Aposto que essa comida que você serve é ruim, é mal feita. Que cara de comida nojenta.

Enquanto eu servia, ela desfilou um discurso imenso. Do começo ao fim da fila, encheu o saco da atendente, que só olhava com um ar cansado e contrariado. No final, a velha virou as costas, e foi-se embora. Simples assim. Ela não ia comer nada, pensei, só foi ali pra encher o saco. Pra descontar sua frustração em cima de uma moça que provavelmente passou o dia todo em pé, no calor da cozinha. 

Quando fui pagar, dei um sorriso sem graça pra moça. Minha vontade era xingar aquela senhora pentelha sem noção, oferecer pra moça todo meu apoio e dizer que eu adorava a comida do lugar. Até ia fazer isso. Mas a moça já estava contaminada. Me atendeu tão rudemente quanto a velha, passou minha conta fazendo aquele barulhinho irritante de 'tss' com a boca, falou: "16,90, moça" com ligeira aspereza e praticamente me jogou os talheres no balcão. 

Peguei minha bandeja meio #chatiada e sentei pra comer. A falta de noção foi clara, da senhora, que não leu o letreiro COMIDA CHINESA, mas o pior de tudo, fiquei imaginando, foi o tom de amargura mal contida na voz dela. Porque educada eu sei que ela foi, e aposto que ela tem acesso à várias dicas de polidez e etiqueta. Mas lá estava ela gritando de graça com a moça, virando as costas e indo embora. Essa mesma amargura frustrada, que se aloja na gente, que consome nossa empatia, e nos faz virar monstros condescendentes e estranhamente inóspitos. Seres estranhos dentro dos nossos corpos. 

Fiquei imaginando quantas vezes por dia a gente é amargo. E quantas pessoas são assim o dia inteiro e já são assim há anos. Será que hoje eu tratei alguém mal? eu invejei isso ou aquilo, eu critiquei desnecessariamente alguém, eu coloquei essa pessoa pra baixo?

Há muito tempo que eu acho que chamar outras mulheres de puta por causa da roupa que veste é um tipo de amargura. Que tratar a vendedora da loja, a faxineira, o zelador mal, é um tipo de amargura também. Que olhar de forma superior uma pessoa que não acredita em religiões em geral, com argumentos de "Você vai pro inferno por não acreditar no meu deus" é ser meio amargurado. Que no âmago de todas essas críticas nocivas e preconceituosas, que ferem bem o que a gente é, está uma grande e próspera casca de amargura. 

As vezes a gente faz isso sem perceber. E acho que o grande desafio é esse. Pegar toda essa frustração e trocar pelo sentir o outro, estar na pele do outro. Acho que a gente se aproveitaria menos da fraqueza das pessoas. E nos tornaríamos menos fracos, também.


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