Páginas

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Mundo machista, apenas pare

Depois de dois episódios envolvendo reportagens machistas, da imprensa local aqui de Campo Grande, que tiveram comentários de mulheres e homens apoiando o senso comum que atrapalha a vida de todo mundo, e que critica a postura de quem defende a liberdade da mulher, eu fiquei me questionando: será que é tão difícil assim entender o que é feminismo?

Primeiro deixe-me explicar. O primeiro episódio era sobre um jornal daqui que sempre fez reportagens muito boas. Mas aí escorregou em uma matéria que falava sobre uma greve de policiais, colocando uma foto de uma policial bonita (tirada sem ela olhar) com uma legenda que reiterava isso, fugindo do assunto completamente. "Agente penitenciária chama a atenção pela beleza em movimento grevista". Quer dizer, qual era o contexto daquilo?

Eu e mais um monte de gente tentamos explicar que a moça não era objeto decorativo. Que ser feia ou ser bonita sendo policial, quem-se-importa? o corpo é dela, a beleza/feiúra é dela! E recebemos argumentos como: "Ela é linda! Se falassem que era feia iam chiar... E por favor, respeitem o olhar fotográfico! Essa patrulha "politicamente correta" está cada dia mais insuportável!!!" e "Nunca foi ofensivo para uma mulher ser bonita, e ser bonita não tira a inteligência e o profissionalismo de ninguém. Quem cogitou essa ideia, esse sim, me desculpe, mas está sendo machista e preconceituoso"

O segundo episódio foi o seguinte: outro jornal online publicou uma manchete dizendo "Com tanto gay na cidade, o que sobrou para as mulheres em Campo Grande?". Aí, já viu. Segue a pérola:

"Na mesa do bar, as três amigas solteiras só comprovam o que as mulheres há tempos vêm reclamando. Hoje em dia há tanto gay em Campo Grande que falta opção hetero para a mulherada. Antigamente, a reclamação era contra os cafajestes, que não queriam um relacionamento sério. Agora, o alvo é a turma gay. “Há anos tem muito gay na balada e, levando em conta que há mais mulher do que homem na cidade, claro que dificulta mais ainda a paquera e arrumar namorado”, comenta Viviane, de 29 anos."

Quando eu li essa reportagem (e não vou nem entrar no mérito da pauta em si), pensei: comentários machistas chovendo em 3, 2, 1. E não deu outra. Foi de "Em Campo Grande falta é mulher séria", pra "mulher em CG tá solteira porque que homem rico com carrão". Sério, nesse nível. 

A polêmica rendeu muito nas redes sociais, então a reportagem estragou a situação mais ainda publicando outra matéria: "Mulher campo-grandense é difícil de conquistar, respondem os homens". Outro 'primor' de comentário na matéria: "Para chamar a atenção dos homens, ele dá a dica “machista”. “Mulher tem que ser comportada. Tem que ter atitude diferente da que vemos na noite. Meninas bêbadas e rebolando até o chão”.

Não, você não leu errado. MULHER TEM QUE SER COMPORTADA. MULHER NÃO PODE SAIR A NOITE. NÃO PODE BEBER NEM REBOLAR. 

Eu sei lá de onde vem essa cartilha. Não, na verdade eu sei. Vem da mesma do estupro, do controle, do estado que manda nos nossos corpos. Corpo de mulher é terra de todo mundo, menos dela mesma. E o pior, o mais triste, o mais deprimente, é que isso não é falado nem visto. Ninguém é preso por ser misógino. Feministas são pintadas como loucas extravagantes que querem roubar o lugar dos homens. Não é nada disso, nada disso mesmo. 

Me senti cansada, exausta, usada. Como jornalista e como mulher. E o que mais doeu, além de tudo, foi a mulherada concordando com os comentários acima, muitas vezes defendendo todos eles com afinco.

Respirei fundo, e escrevi o que o nervosismo me permitiu na hora. Eis o que publiquei no Facebook depois disso:

"Cansei gente, de ver tanta publicação machista. Não é só o jornal não, é geral, e inclusive, muitas mulheres julgando as outras sem dó, porque se vestem de um jeito x ou fazem determinada coisa. Mulher é sempre pária, sempre "mal comida", "interesseira". 

Acham normal que a mulher não tenha autonomia de ficar com quem quiser, fazer o que quiser e ainda acham legal a mulher ser punida por causa disso. Cansei, cansei de mulher postando comentário machista e achando que o feminismo não te engloba, mas eis uma notícia, você é mulher! feminismo é a defesa do SEU gênero e existe pra defender o SEU corpo da tutela de outros! e pra garantir os SEUS direitos! 

Se você acha legal e concorda quando um homem diz que "faltam mulheres sérias", e que "mulher não pode beber nem ir pra balada pra se dar ao respeito", só te digo uma coisa: você pode achar que não, mas um dia o machismo vai te atingir. Porque toda mulher passa por ele, seja de forma velada, seja de forma direta. E um dia você vai entender e apoiar o feminismo, se tiver alguma sorte".

Então elas vieram. E alguma coisa, sabe, acendeu de volta. 

Da Sybylla:
"Mulher dizendo que odeia o feminismo cospe no prato que foi responsável por ela poder estudar, trabalhar, se divorciar, ter ou não filhos se quiser, votar, ser ou não dona de casa, casar ou não... Cansa demais mesmo ter que ficar explicando, explicando e explicando cada vez que surgem essas merdinhas de comentários. Pior quando ainda soltam aquela "não sou machista, mas..." Aí estragou foi tudo. 
Não se preocupe, linda, sua indignação é nossa também".

Da Daniela:
"Conversa longa...eu acho que é ignorância, de ignorar, de se deixar levar, sem observar o que realmente acontece a sua volta, não perceber nas entre linhas, e olha que na maioria das vezes tá escancarado o machismo e deixam passar batido!"

Da Suzana:
"Mulher machista dá nojo e me envergonha. mas, além disso, fico indignada com gente que se diz "esclarecida e mente aberta", mas no fundo conserva um machismo velado, que, vez por outra, vem à tona, a exemplo de homens (e mesmo mulheres) que "dizem" defender a igualdade de gênero (e não me atenho aqui às suas especificidades inatas), mas são os primeiros a julgar uma mulher solteira se ela for livre o suficiente pra ficar com quem e com quantos ela bem entender. pior que o machismo declarado é o machismo velado!!!! e tô cansada de ver esse tipo de postura de conhecidos e ex-namorados metidos a descolados. só acredito que nem tudo está perdido porque felizmente tenho amigos sensatos e inteligentes, que tem discernimento quanto a isso".

Obrigada, meninas, e também meninos (que curtiram e compartilharam o post). Ainda dá vontade de continuar, e é tudo por saber que vocês também acreditam. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Das coisas que um dia voltarão pra gente

Daquelas coisas que a gente lembra pra sempre, aqueles pequenos fatos importantes que mudam o curso do  nosso pensamento pra sempre. O dia em que você deixou de ter medo de se perguntar se Deus existia mesmo, deixou de temer uma punição dolorosa por no mínimo se questionar. Um momento em que você sentiu na ponta da língua aquele gosto inesquecível, que hoje até dói de lembrar. O momento esmagador em que você teve certeza do quão pequena era diante desse mundo grotesco. 

Foi assim comigo e Gabo. Meu pai vivia dizendo que existia um escritor chamado Gabriel García Marquez, que era Prêmio Nobel de Literatura, um colombiano daqueles marrentos, e o pior, jornalista. E que ele havia escrito um livro chamado "Cem anos de solidão", onde havia uma personagem chamada Úrsula Buendía, que era a minha avó. Simples assim, D. Enerstina estava escrita, "cuspida e escarrada", naquelas páginas. Eu tinha 13 anos. 

Encontrei "Cem anos..." jogado pela casa, uma edição antiga, deixada sobre a mesa. Peguei a mania engraçada de andar pela casa lendo, porque não queria largar do livro de jeito nenhum, nem na hora de comer. 

Eram férias escolares, e eu estava deitada na cama dos meus pais, quando finalmente virei a última página. Entrava uma nesga de sol muito forte pela janela, e até hoje é aquele o cômodo mais ensolarado da casa inteira. Sentei no chão de azulejos e chorei como nunca. Me debulhei em lágrimas desesperadas, e alguma coisa muito grande transbordava de dentro de mim, e eu não conseguia tirar Aureliano Buendía da cabeça, com seu olhar triste e seus peixinhos dourados, da cabeça. Nem Melquíades, o Mago, nem as grandes e fortes personagens mulheres, como Remédios, A Bela, e Amaranta e Rebeca. 

Começou aí, meu amor por Gabo. "Cem anos..." se tornou meu livro favorito de todos os tempos. Cheguei até mesmo a desenhar a árvore genealógica dos Buendía, em algum momento da vida. A seguir vieram outros livros, como "O amor nos tempos do cólera", "Doze contos peregrinos", "A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada", "Viver para contar" e todos que pude ter nas mãos. Mais os que mais amo são os engendrados para consumirem nosso realismo e transformar nossos sentimentos em fantasia. 

E um dia, sem que eu sequer imaginasse, encontrei um livro de Gabo guardado no armário. "Olhos de cão azul"**, de 1947. Nem meu pai sabe como esse livro veio parar aqui em casa. Eu o devorei principalmente pelo conto "Eva está dentro de seu gato". Sonhei mil noites com essa história. E não lembrava o que tinha sido feito do livro. 

Eu havia emprestado pra uma pessoa muito querida há muito tempo atrás, e ele agora retorna pra mim. Já o reli no mesmo dia, e matei as saudades das palavras dele. E as histórias, os contos, soaram diferentes de quando eu li. Acho que eu estava precisando reencontrar certos sentimentos há muito esquecidos na estrada. Tem coisas, sim, na vida da gente, que nunca mais se recupera. Outras, acabam voltando pras nossas mãos, mesmo que demore. De vez em quando, acreditar nisso é somente o que a gente precisa pra continuar sonhando.


**"Olhos de cão azul" é um livro com 11 contos escritos por Gabo na juventude, 
que falam sobre a morte em muitos aspectos. Mesmo com um título poético, 
é um texto imaginativo e agridoce sobre a parada súbita do final, e uma troça
com a lembrança fugaz que nos tornamos pra quem por aqui ainda fica. 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Dia de não folia

Acorda, toma banho, escova os dentes. Coloca o tênis confortável ou aquela sapatilha amaciada, porque afinal, agora não existe mais a obrigação do terno sempre, de estar sempre impecável. Embora antes não fosse uma exigência, era uma obrigação, parte do trabalho. Agora posso ir trabalhar de flanela, arrumada ou mais largada, do jeito que for. Saio correndo, tiro o carro da garagem, dirijo a minha vida.

Centro da cidade fervilhando, movimentado. Trabalhar um pouco mais tarde dá nisso, mas meu sono agradece. Estaciono na frente do jornal quando tenho sorte. Cumprimento os vigias, que sorriem alegremente. As moças da portaria são todas meio iguais e sempre me olham indagadoras.

Primeiro pego um copo cheio de café. Sento na mesa, abro o e-mail, desisto das redes sociais, faz muito tempo que não me interesso mais como costumava ser. Abro a agenda, elenco as pautas, coloco os assuntos do dia. Pauta marcada pras 10 horas, saio correndo de bloco na mão, caneta em punho. O fotógrafo vai no banco da frente, e a repórter do Arte e Lazer (eu) atrás. Amenidades do dia a dia. "Você foi no Cordão da Valu ontem, cobrir?", e eu respondo que nem fui a trabalho, era minha folga. Fui mesmo pra pular carnaval contrariando minha própria personalidade. Fui de vestido rodado e batom vermelho, tomei chuva e dancei no asfalto, porque eu precisava fugir um pouquinho de ser eu mesma. Fui menina faceira na chuva por algumas poucas horas, me embalei em samba e em marchinhas com os cabelos colados no rosto, vi olhos me encarando, olhei de volta com a mesma intensidade, bebi e deixei aquele aguaceiro lavar tudo que me incomodava e levar rua afora, gelei até os ossos e não me importei. Mas nada disso sai da minha boca na conversa. "Fui sim, e estava legal apesar da chuva".

O motorista pega um caminho diferente do habitual e ali, no meio da rua, avistamos um acidente. O carro imediatamente para, e descemos pra ver o que aconteceu. De carnaval, de dança e alegria, pra uma moça que se acidentou de moto. O braço dela se estilhaçou contra o vidro do carro, e ela berrava e gritava e chorava enquanto o Corpo de Bombeiros tentava remove-la dali, debaixo do veículo. Não consigo olhar por muito tempo, e relanceio apenas os ossos expostos e o pedaço do corpo completamente esfolado. Converso com o motorista  do jornal pra não encarar, porque meu estômago pode me trair. Por sorte, outro repórter cobre a pauta, sendo da editoria certa. Uma constatação: editoria de Cidades/Polícia não é meu forte.

De volta na redação, o telefone louco, incessante. "Mataram uma moça na Vila Alba". "O desfile de carnaval do grupo especial foi adiado". Chuva nas janelas, coloco o fone no ouvido pra me concentrar no texto. Cinco mil toques, capa, fotos. Texto pronto, ideias formatadas. 

Mais café.

Mais vivência, mais rua. Mais chuva, mais asfalto, por favor. É que só assim que eu me sinto viva por esses dias. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Ch-ch-ch-changes

Na ponta dos meus dedos e no meu cérebro, essa massa cinzenta que nos separa de todas as feras mas nos faz um pouco piores, estão os elementos do meu ganha pão. A minha razão de existir, de me alegrar e ainda conseguir sorrir depois de tudo. O escrever. 

Há algum tempo, eu, apaixonada e intensa, havia murchado. As situações do cotidiano do trabalho vinham me deixando chateada e desanimada. A demanda existe pra ser cumprida, mas eu não me sentia mais motivada. Alguma coisa havia secado, ali dentro de mim, como um riacho que seca no verão. Ele há de se encher novamente, mas é preciso esperar as chuvas e as monções, e todas as mudanças do vento. E eu impaciente, sem querer esperar o ânimo voltar, sem saber muito bem como retomar o gosto pelas pequenas batalhas do meu emprego, do meu ofício. 

A gente doa oito horas por dia do nosso tempo pra algum projeto, mas acaba entregando muito mais que isso. E percebi que se não fosse mais sorrindo, não adiantava. Que não ia mais vingar, e os resultados iam ser apenas meio resultados, e a insatisfação seria uma constante. Eu não podia me dar ao luxo de ter mais isso, ainda, meio torto na minha vida. A banda que não vinga, os relacionamentos amorosos que não fluem, a falta de vontade pra sair na balada, o desânimo pra lavar o carro, tudo isso pode continuar meio capenga, porque nada é sério e é tudo facilmente resolvível. Mas o trabalho, o ganhar o pão, a confiança em mim mesma e a empolgação das pequenas vitórias, ah, isso não poderia, de jeito nenhum. 



Me encontrei ansiosa sobre a decisão de deixar meu emprego de dois anos, e em silêncio. Não confiei meus sentimentos de verdade pra ninguém, e isso foi um mau hábito que desenvolvi desde que... sei lá desde quando. Acho que desde que me vi realmente sozinha. Não avisei ninguém, de início, sobre essa vontade de mudar. Mas as pessoas que me cercavam já haviam notado. Então quando parecia mais palpável, anunciei a minha dúvida. Mudar não é fácil e eu estava morrendo de medo. Medo de dar errado, de não me adaptar. Medo pelos feriados que eu não teria mais, dos domingos trabalhando, do salário que é o mesmo. 

Ansiedade me carcomendo por dentro, até o momento em que eu resolvi dizer que ia mudar. Anunciei em voz alta, na claridade. Mudei, mudei de emprego. 

Agora sou repórter de jornal impresso diário.

Eu nunca havia estado em jornal impresso. Todos os dias levo solavancos, como em tudo na vida, mas a experiência na agência me deu um escudo muito forte. Todos os dias me sinto mais recompensada pelas minhas escolhas. É lindo estar do outro lado da moeda. Saudades de todos do outro trabalho, das experiências múltiplas. A certeza de que outras virão. 

Guardei esse post com carinho durante dias antes de vir aqui e falar. É um novo momento, e amanhece de novo. Ali fora, e aqui, na minha vida.