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segunda-feira, 28 de maio de 2012

Pedaços #1: Um prelúdio para Morpheus

Com 15 anos, primeiro colegial, eu não entendia nada de física. Nem de matemática. Gastava horas intensas estudando, mas aquilo nunca entrou na minha cabeça. De uniforme azul, calça de quem anda de skate e tranças por todo cabelo, comecei a ter aulas de reforço. 

Saía da escola, almoçava no pé-sujo a algumas quadras, assistia algumas aulas e pegava o ônibus de volta. Um belo dia, na metade dessa rotina, desci alguns pontos antes e peguei outro ônibus. Fui parar na praça Ary Coelho, que costumava ser o reduto dos lambe-lambes, pipoqueiros e ciganas. Eu era (?) meio tonta e me distraía fácil; surpresa era eu nunca ter me perdido de verdade. 'Tudo bem', pensei. 'Dá pra pegar o 080'. 

O sol quente me fez ter vontade de tomar um sorvete, então comecei a andar por ali. Cheguei em poucos segundos à quadra onde se concentram os dois únicos sebos de livros que não são religiosos e que possuem uma certa tradição. Maciel Livros Usados tinha cara de livraria/papelaria comum, e Hamurabi Livros tinha cara de buraco negro no espaço que vai te sugar para um mundo maravilhoso e desconhecido. Escolhi a segunda opção. 

Meu pai já havia me levado na Maciel anos antes, onde fiz a festa e escolhi 'Noite na Taverna', entre outros, lendo a obra nada recomendada para crianças na mais tenra idade. Não, não cresci psicopata. Naquele dia levei Drummond, Cecília e Clarice. Também peguei Machado de Assis, que sumiu e eu só li metade. 

Hamurabi é um amontoado de livros sem fim. Discos de vinil em perfeito estado, mil sonhos da cabeça cheia de trancinhas compridas. Corredores altos e poltronas muito velhas, gente que caminha sem fazer barulho por entre as estantes. Pensei 'todo mundo aqui deve ser gato, pra andar, assim, sem um ruído'. Fui tomada por uma febre momentânea de que havia achado meu lugar no mundo. Minhas mãos ágeis não viam a hora de folhear todas aquelas raridades e belezas. Eu estava vibrando. 

Em questão de meia hora tive uma dor de cabeça terrível por causa da poeira centenária, e tive que sentar na calçada para esperar a vertigem passar. É claro que perdi o ônibus. 

Enquanto tossia os ácaros e todos os fragmentos de velharia dos pulmões, vejo uma banquinha de jornais atulhada na rua, e um senhorzinho sentado lendo jornal. O letreiro dizia 'revistas-gibis-livros-usados'. Um apêndice da Hamurabi, e sem toda a carga de partículas de pó. Levemente abalada pelo ataque de asma momentâneo, comecei a folhear revistas e gibis antigos. O tiozinho deixa seu jornal de lado e fica conversando animado comigo. 

'Ah, tenho um aqui que acho que você vai gostar', diz ele, em determinado momento. Procura entre pilhas de alguma coisa. Enxergo a palavra 'VERTIGO' no meio. Ele me estende uma edição surrada de um gibi de 1988. 'Sandman: Prelúdios e Noturnos, de Neil Gaiman'. DC Comics. Pago a quantia módica de dois reais e pego o ônibus que já perdi quatro vezes. 

Devoro em meia hora, em casa. Entro na internet, busco informações, descobro que aquilo é mesmo uma raridade: não se edita mais Prelúdios e Noturnos, o primeiro arco do Sonhar, não se publica mais. Quase choro, porque eu queria mais, muito mais. Aquela versão mitológica e surreal de Robert Smith (todas as bandas da escola tocavam 'boys don't cry') me deixou em cócegas. Eu sabia que havia mais, muito mais. Em pouco tempo resolvo a situação e consigo as edições para ler online, incluindo Stardust. Foram noites em claro na frente do computador, até finalizar a leitura da edição 75 do arco 'Despertar'. Arrepios no corpo todo durante o processo de encontro com Morte, Delírio, Lúcifer, os perpétuos, Barbie, e toda a caixa de Pandora que eu acabara de abrir. 

Sempre brinco que vou ter todos na estante, um dia. E vou mesmo. Porque eu realmente acho que naquele dia, aquele senhor viu alguma coisa em mim, enquanto me estendia a edição original de uma obra prima. Ele foi Morpheus, e me jogou um punhado de areia nos meus olhos. Ele foi um Sonhar. 




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P.S: Começa aqui uma seriezinha de memórias sobre livros, músicas, quadrinhos, discos, filmes.Vou chamá-las carinhosamente de 'Pedaços'. Textos sobre obras importantes pra mim, análises ou não, críticas, sinopses ou apenas uma crônica carinhosa sobre a minha memória afetiva com essas importantes partes da gente. Ciao!

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